VALQUÍRIA MATARAZZO
Quando cheguei a Matarazzo, encontrei um edifício devoluto com uma imensa história e uma imensa importância na cidade de São Paulo. Aquele lugar tinha sido um hospital, um sítio de cura para a cidade, entretanto abandonado e parcialmente destruído. Entrei na capela, já meio pintada, em processo de restauro, e pensei em todas as pessoas que teriam passado por ali a rezar pelos seus doentes, a depositar a sua esperança. Ocorreu-me que aquela capela teria sido como que um satélite, um lugar de conforto para quem sofria no hospital, tornando-se parte ativa da comunidade, o que me parece muito interessante. Historicamente, as igrejas e as capelas sempre desempenharam um papel preponderante nas cidades, oferecendo refúgio e segurança, mas ali esse papel era ainda mais ativo, pela proximidade do sofrimento diário. E para mim esta experiência tornou-se numa espécie de peregrinação, mesmo sendo ateia.
Naquele momento dei-me conta de que a minha contribuição para aquele lugar dessacralizado poderia ser a de lhe devolver a dimensão que tinha perdido, a religiosidade e a luminosidade. Por isso desenhei um grande crucifixo, como os que identificam as igrejas. Mas quis acrescentar-lhe algo mais, uma presença que começou por ocupar o chão mas acabaria por se elevar, para voltar a permitir o culto. Interessava-me preparar a peça para as duas vivências: uma profana e outra mais santificada, digamos assim. Decidi criar para ali uma das minhas Valquírias, figuras femininas ligadas à mitologia nórdica, famosas por sobrevoar os campos de batalha, restituindo a vida aos mais corajosos guerreiros, encaminhando-os para Valhala, para se juntarem aos deuses. E pareceu-me a solução perfeita: uma Valquíria que contribuísse para devolver a religiosidade, como um novo sopro de vida, àquele local. Foi assim que a “Valquíria Matarazzo”, integrando pela primeira vez um espaço religioso, se tornou na mais católica de toda a série de esculturas têxteis que eu venho espalhando pelo mundo.
E esta é sem dúvida uma Valquíria especial por isso mesmo, porque foi criada para um templo com caraterísticas próprias, ao invés de um museu ou de uma galeria de arte. Não é uma das mais excêntricas, decidi imbuí-la de um espírito mais delicado, nas cores e nas formas, mas é forte e firme na presença, precisamente porque queria contribuir para dar um novo sentido àquele lugar, que o habitasse novamente, estabelecendo a ligação entre o espiritual e o artístico. Via-a um pouco como os anjos das igrejas, que carregam corações nas mãos. E é como se esta deusa guerreira tivesse ficado como guardiã do templo enquanto ele estava a ser cuidado e restaurado.
É fantástico acompanhar todo este processo, as diferentes fases da evolução do edifício. Como foi fantástico ter sido incluída nele pelo Alexandre Allard, que é um homem com uma visão incrível, com uma ideia abrangente da criação, de grandes projetos. Um homem com uma enorme capacidade de (re)construção, de transformação, muito ligado às artes, à arquitetura, e através destas a uma dimensão espiritual. Foi muito inspirador ver a força que ele depositou naquele lugar para lhe devolver a sua alma, sem esquecer a componente artística. Porque um homem sem espiritualidade é um homem sem identidade. E a sua é uma identidade criadora.
Na verdade, a arte sempre cumpriu um papel ligado à espiritualidade. Hoje em dia, esse conceito parece ter sido relegado para segundo plano mas “criador” e “criação” são palavras que estão ligadas a Deus e aos artistas. Portanto, não se pode falar de arte sem falar de criação artística e não se pode falar do artista sem falar do criador. A ideia de Deus pode variar consoante as religiões mas é a ideia da entidade que cria e recria o mundo. Os artistas não são deuses, nem têm que o ser, mas ao ser criadores de obras também criam uma forma de olhar o mundo. A palavra criação vem acompanhada de um conceito de inesperado, do desconhecido, de algo novo. Eu acredito que toda a criação e todo o artista tem um sentido espiritual. Tendo mais ou menos consciência disso, são coisas indissociáveis, é a ligação do espírito à matéria. A arte é a materialização de algo que tem a ver com o espírito, a forma como o espírito se relaciona com o todo. Porque o olhar individual do artista traz ao todo uma maior ampliação. Ou expansão. Através do poder de renovação do espírito criativo, há uma energia especial que dá novos sentidos aos lugares. É isso que está a acontecer na Capela Santa Luzia, é isso que está a acontecer com a Cidade Matarazzo.
Joana Vasconcelos
Denis Arne Quinze Studio
Obra exibida em
Mais
Obras
Obras