Com a fundação de um novo museu em Boston, Joana Vasconcelos é convidada a criar uma peça site specific com a qual decide homenagear a figura local de uma mulher nascida escrava que chamou a si a liberdade e se destacou na luta pelos direitos humanos. Mumbet dá nome à mais recente Valquíria, corpo têxtil com recurso a capulanas que também são um hino à riqueza e diversidade do continente africano. Dá-se a ver ao mundo dia 22 de Fevereiro de 2020, naquela que também é a primeira exposição individual da artista em solo norte-americano.
Nasce assim uma nova Valquíria, da série a que Joana Vasconcelos deu início em 2004 com peças suspensas a partir do teto, inspiradas nas magnânimes personagens femininas da mitologia nórdica que sobrevoam os campos de batalha contadas em cavalos alados, devolvendo a vida aos mais corajosos guerreiros mortos em combate e agora recrutados para o serviço dos deuses. Na senda das Valquírias especialmente concebidas para o Palácio de Versalhes, Le Bon Marché de Paris ou o Museu Guggenheim Bilbau, Mumbet foi pensada ao pormenor para se enquadrar no espaço do MAAM que agora se inaugura. Depois de tirar o chapéu a grandes figuras históricas como Simone de Beauvoir e Simone Veil, Joana Vasconcelos vira agora o foco para o contributo de Elizabeth Freeman na luta pela liberdade.
Com o convite do novo museu de Boston, a artista portuguesa quis aproveitar a oportunidade para se relacionar com a comunidade local. Decidida a conhecer-lhe a história, ficou particularmente sensibilizada com a figura da afro-americana Elizabeth Freeman e com o seu contributo cívico para a abolição da escravatura no seu estado e no seu país. Nascida Bett, por volta de 1740 e descendente de escravos, foi oferecida ainda criança a uma família de Massachussets. Não sabia ler nem escrever mas consta que, ao ouvir a leitura pública da constituição local, segundo a qual «todos os seres humanos nascem livre e iguais», decidiu tomar nas próprias mãos o seu destino. Deu início a uma batalha legal e conseguiu que o tribunal lhe garantisse a liberdade em 1781, momento a partir do qual adotou o sobrenome Freeman e o primeiro nome Elizabeth. Destacou-se como cuidadora da comunidade à sua volta e ajudou a criar os filhos do advogado que a defendeu e que se tornou seu patrão (Theodore Sedgwick), que haviam de cunhar o nome pelo qual se tornou conhecida, quando mum (mamã) Bett passou a Mumbet. Charles Sedgwick escreveu-lhe a epígrafe da campa*, Susan Anne Sedgwick pintou-lhe um quadro e Catherine Maria Sedgwick registou em livro a sua história para a posteridade. Figura tão estimada quanto determinada, Mumbet tem ainda uma estátua em seu nome em Washington e um filme de Hollywood em fase de desenvolvimento.
Joana Vasconcelos presta-lhe homenagem desde já, com uma instalação monumental incorporando elementos têxteis que remetem para os legados em tecido que Mumbet deixou em testamento à sua descendência e as bolas que usava numa gargantilha dourada. As suas origens africanas estão representadas na forma das capulanas vibrantes de cor e expressão. Estão ainda presentes a fauna e a flora do continente africano, na riqueza da sua biodiversidade, em elementos de pelo ou vegetação que complementam a peça com camadas adicionais de complexidade. Palmeiras, embondeiros, folhas e frutos fizeram o seu caminho para esta valorosa Valquíria que recupera mais uma vez componentes do artesanato português e recorre a rendas da Ilha do Pico, em afinidade com a comunidade de descendência Açoriana a habitar na zona de Nova Inglaterra.
Peça de grandes proporções, Mumbet tem a particularidade de não ser especialmente sumptuosa ou luxuosa mas distingue-se pelo elevado número de braços, solícita e generosa como a mulher que a inspirou. Instalada na galeria de entrada para o museu, o corpo principal dá-se a ver a quem chega e lhe vai descobrindo os pormenores à medida que desce as escadas. Na parte inferior do espaço, o visitante pode circular livremente entre quatro braços descendentes, que criam a envolvência de um espaço confinado no centro da peça. As diferentes componentes da obra serão montadas apenas no local, num processo que deverá demorar cerca de 10 dias a uma vasta equipa com recurso a meios de elevação especializados e planificação meticulosa. Depois de seis meses de produção, os pormenores de finalização da instalação acontecem no próprio espaço do museu, com a contribuição de um grupo de alunos e habitantes de Boston, envolvendo uma vez mais a comunidade local no projeto artístico. Em sintonia com a missão do MAAM, uma instituição sem coleção própria mas com entrada livre, cujo objetivo é tornar a arte contemporânea do mundo inteiro acessível a todos.
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