"Um novo objectivismo
A arte de Joana Vasconcelos na sua configuração pósmodernista é a apropriação de objectos do quotidiano desviados para fluxos de diversa conotação. Propõe, assim, um novo objectivismo — enredo multifário, citação, miscelânea, invenção maravilhante de objectos desenhados pela lógica do pensamento absurdo, de pregnante cromatismo.
Pelo instinto criativo e pela própria teoria objectivista, não é o objecto que se torna obra de arte, como na pop (rebarbativa, globalizadora), mas a obra de arte que se torna objecto (único, particular).
Trabalhos iconográficos fabricados no imaginário, na conjectura técnica, construídos por um saber artesanal, privado; ruído cultural, ostentação, qualquer coisa de sublime desfuncionalização; os objectos ganham vida própria, irradiam mil facetas da interpretação.
O mundo do objecto transformado apresenta-se como res facta, máquina onírica, ícone de luz, automutante, é uma introdução ao disforme ou, dialecticamente, ao design perfeito —execução tecnoartística em termos humanísticos.
Como iconografia dum novo objectivismo podemos classificar na generalidade dos seus traba - lhos e numa avaliação estatística, vários tipos de ícones, dependentes da interpretação singular do espectador, da sua fruição transbordante de signos objectivistas, em dois tipos essenciais: Iconografia estática — que procura o indelével, o mundo encoberto e inanimado, realização tridimensional pura; refere a instalação, a escultura, o despojo industrial. A parafernália é de inventário inesgotável (e.g. lâmpadas em pop luz; canoas fixadas em mural de XK-21; escovas em brush me; napa capitoné a forrar a cabina de strangers in the night; fitas mosqueiras em trianon; carteiras de comprimidos para o sofá aspirina e a cama valium; luminescências em o mundo a seus pés; plástico pvc, espanadores e ferro para o recanto do labirinto de flores do meu desejo; tupperwares, borracha e sortido de guloseimas para a mesa de picnic party; o armário de spot me é cravejado de espelhos de toalete; fibra de vidro para artifícios; funis de pvc para tolerância zero.
Iconografia cinética — objectos dromológicos, animados por regimes mecânicos simplistas, bricolage low tech, exaltação do automatismo — máquinas, apenas máquinas de desejo.
A praxis é tecnologicamente discreta.
Um motor de baixa rotação para activar o disco das bonecas em fashion victims; motores de antiga máquina de lavar a roupa impulsionam a rotação dos dois cilindros de collants de colorido gestual em wash and go; tapete rolante e mototambores para small world; em spin os secadores são animados por um interruptor de pressão que impulsiona o ar frio; os globos de o mundo a seu pés acendem-se intermitentes via sequenciador; em strangers in the night os farolins são controintro_ lados por três grupos de relais; o repuxo de fontanela é accionado por um motor de irrigação de jardinagem; ventoinha de computador determina a acção programada de air flow; rolos de papel higiénico no carrinho manobrável de bundex-car; uma aparato de fumo para aladino.
Projecto das ciências cognitivas que pressupõe a abertura e a interacção de categorias perceptivas, antropologia que procura definir e observar, engendramento analítico das estruturas plásticas, dos signos do desenho industrial e dos símbolos da mecânica e da electrónica com que designa os dispositivos (e.g. o carrossel com cadeiras de ferro de ponto de encontro e o seu movimento centrífugo); os objectos solicitam por vezes a participação do espectador (e.g. a manipulação dos estores abre para a vista interior dos objectos em miniatura duma casa portuguesa).
Cada objecto pressupõe uma cenografia, mitificação gloriosa do artesanal e do industrial — o cinético e o kitsch, o carismático e o delirante. O seu ritmo é abstracto, apenas determinado por obscuras leis da mecânica e da electrónica ou pela volubilidade da acção humana.
Podemos estabelecer conexões mitopoéticas de alguns desses objectos:
Airflow, um armário fechado por um painel de gravatas multicor agitadas propõe a emanação do invisível, como o vento ou o ente profano escondido dentro do sacrário; um toque venal chique — as gravatas são de seda pura, desenhadas por Gucci ou Hermès.
Wash and go: dois rolos espanadores, morfologia cinética de collants — o espectador é o automóvel levado à autoreguladora máquina de lavagem.
Um altar para taças, em oiro sobre azul, premeia o gesto desportivo e torna-o parábola transcendental do troféu. A cama valium significa o telespectador, é redentora, conduz ao sossego imaculado do sonho; é isomorfismo do repouso após o enérgico exercício de karate que leva ao pacífico ser, conduz à disciplina mental, a uma delicada ternura, como quando olhamos um brinquedo maravilhoso ou a nossa alma se eleva a complexidades mântricas.
As cadeiras de ténis de supino, monócromas, instaladas no relvado ao ar livre, são arbitrais e decidem um jogo imaginário no vazio; colocadas num recinto sobre um alegado painel de palavras cruzadas, inscritas no chão e no tecto — são denotatum duma nova estética lúdica dos objectos.
Em spin, um espelho emoldurado por secadores de cabelo — é a parábola do ar condicionado quando do último olhar de Narciso.
O sofá aspirina é trono farmacêutico, evoca uma voz silenciosa de alguém sentado em vidro transparente, só ouvida pelo íntimo, que aplaca as dores do mundo e o mantém acordado, feliz.
Fontanela é um simulacro totémico do jardim, asperge viço de água, ejacula metáforas periódicas, comemora a frescura. Em strangers in the night, a cabina forrada exteriormente de farolins na sua metalinguagem de luz e sinais protege a alcova dos segredos os mais intransmissíveis.
O lustre de porte transatlântico da noiva, constituído por tampões, é em-si o sangue menstrual cristalizado em mil fulgores — sumptuosidade artística da higiene.
O elenco tecnológico é polissensorial:
O elemento olfactivo, a naftalina, é a matéria-prima de brise, novo atributo perfumado para as rosas sintéticas.
A concepção acústica nas obras da Joana sumariza-se numa espécie de música emanada pelos mecanismos, auto-suficiente. O som, não sendo significante duma postura musical, indica zonas sonoplásticas específicas — são atributos puramente auditivos (e.g. a Callas canta Bizet com expansão tonitruante em Carmen, lustre de saco com três metros, adornado de tiras de plástico negro e brincos de plástico); uma gravação de sons de ginásio ecoa da escultura oiro sobre azul. A voz de Sinatra é mais um objecto sonoro recuperado via CD em strangers in the night, alarme de trânsito nocturno. O som maquínico é privilegiado em spin e small world, na procura do concretismo.
O táctil é uma sedução subliminar em peças como mise, uma cabeleira falsa ou tentadora na mimese luxuosa das penas de avestruz em flores do meu desejo. As texturas glabras ou granulosas ou florescentes, na pluralidade dos seus materiais sintéticos, apelam ao tacto.
A pluralidade da criação de Joana Vasconcelos refere os processos técnicos empregados num tratamento específico, original, de matérias que reclamam a mestria do seu engendramento racional e se libertam na euforia esquizo das representações; desafia o espírito artístico a desvendar o meio de produção, o modus faciendi, espécie de ironia ao neo-realismo convida ao compromisso do público — festa da cor.
Na arte de Joana Vasconcelos não interessa apenas o dizer mas principalmente como dizer."
Jorge Lima Barreto. Lisboa, 1 de Novembro de 2001