Macacos

'Quase uma forma de linguagem universal, o croché tem expressões diferentes em todo o globo, mas dispensa traduções. Eu já comprei peças de croché um pouco por todo o lado e continuo surpreendida com a riqueza de detalhe e variedade em diferentes partes do mundo. Porque o croché funcionou, durante muito tempo, séculos até, como uma das poucas expressões criativas a que as mulheres podiam ter acesso. Era feito no ambiente doméstico, usado com a dupla funcionalidade de proteger e decorar, mas acabou relegado para o fundo das gavetas em tempos mais recentes, desprovido de sentido e significado. Carregado da intimidade do espaço privado, mexe com o inconsciente das famílias, com as memórias ao nível do sentimento e não da racionalidade. Eu já os usei para cobrir um televisor ou envolver um piano. Também me sirvo deles regularmente nas obras têxteis que são as Valquírias, sobre figuras em cimento e barro, ou peças de Raphael Bordallo Pinheiro, numa série a que damos o nome de “Bestiário”.

Raphael é dos grandes artistas portugueses de todos os tempos. Deixou desenho, escultura, caricatura, pintura, publicações, uma rara fábrica que impulsionou a notoriedade de uma cidade e continua a produzir peças de cerâmica nos moldes criados por ele. Eu escolhi uma série de animais em relação aos quais temos uma relação de controlo ou medo: cavalos, touros, lobos, gatos, cobras, caranguejos, etc. Toda uma série de cerâmicas naturalistas, pintadas à mão, podendo variar em escala mas sempre o mais fiéis possível à aparência do animal real.

Eu cresci com a cerâmica do Raphael nas casas da minha família e foi natural apropriar-me delas, transportando-as para a arte contemporânea. Cubro-as de peças de croché em cores e trabalhados diferentes, todas da Ilha do Pico, nos Açores, onde um grupo de artesãs continua a aperfeiçoar uma técnica incrível, muito bela e depurada. O que daí resulta são peças únicas e exclusivas, que – para além do simplesmente decorativo – exprimem uma relação profunda com o reino animal, com a tensão gerada entre o conforto e o poder. A peça que cada um escolher diz muito sobre nós próprios, de entre os animais de que nos queremos alimentar ou que escolhemos domesticar, revelando o imaginário privado e coletivo. Esta foi a forma que encontrei de valorizar o legado e a perícia das mulheres que fazem croché desde sempre.' Joana Vasconcelos

MacacosMacacos
Pilu, 2021 © Atelier Joana Vasconcelos
MacacosMacacos
Adriano, 2024 © Atelier Joana Vasconcelos
Detalhes da Obra
DATA DE PRODUÇÃO
Desde 2021
MATERIAIS
Faiança Rafael Bordalo Pinheiro pintada com vidrado cerâmico, renda em croché dos Açores
DIMENSÕES
39 x 20 x 20 cm