Família Feliz, da série Esculturas em Cimento, questiona o padrão primordial familiar – veiculado na doutrina social do catolicismo – e perverte a sua representação na estatuária clássica. O conjunto composto por duas esculturas de cimento e um boneco de borracha eleva a família nuclear da sua vulgaridade, para simbolizar a sagrada família, afirmando ainda uma inesperada e metafórica abordagem natalícia.
Como é habitual, a natureza do processo criativo de Joana Vasconcelos volta a assentar numa reflexão sobre a realidade e na posterior descontextualização e subversão de objetos do quotidiano. Neste caso, a artista requisita dois modelos clássicos, vulgarizados pela estatuária mediterrânica produzida em massa e frequentemente utilizados na decoração de jardins, para aludir, uma vez mais, a uma improvável associação entre a tradição e a contemporaneidade, o sagrado e o profano. Desta vez, num percurso inverso ao que acontece com a maioria do seu corpo de trabalho, a artista traz o exterior para o interior.
As duas imponentes peças a ladear o berço de Jesus – pintadas à mão e envoltas em croché de algodão de elevado labor manual – simbolizam a Virgem Maria e São José. Mas são, ironicamente, representações da ninfa romana da Primavera, Flora, e do deus mitológico romano do vinho, Baco. Estas imagens sensuais, ambiguamente protegidas e aprisionadas por uma segunda pele, proporcionam um vasto campo de leituras, despertado pela simultânea beleza e estranheza que o resultado da operação produz: habitualmente contido, este naperon expande-se sedutoramente sobre os corpos das três figuras.
O croché pertence à nossa memória coletiva e está profundamente imbuído de recordações familiares. Sendo desde sempre uma técnica confinada à casa, às mulheres que ainda não tinham conquistado o seu lugar no mercado de trabalho e passavam esta técnica tradicional às suas filhas; polvilhava as casas das nossas avós, transformando o mero televisor industrial num objeto de culto doméstico. A partir desta reciclagem de elementos iconográficos e linguagens familiares, Joana Vasconcelos volta a explorar, de forma poderosa, o imaginário popular e a dicotomia artesanal/industrial.
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